segunda-feira, 21 de junho de 2010

Pelas Fissuras da Rocha














O balanço do ônibus sempre me fez sentir aquele enjôo; mas no dia em questão, imerso na solidão acre, rouca, o desconforto foi apenas fundo das figuras dançantes na paisagem dominical que bailavam impetuosas diante de meus olhos.

O ilustre desconhecido não intimidou com seu chapéu encardido, lenço e facão. Parecia não desejar nada além de mais alguns poucos instantes de descanso e não conseguiu dizer com palavras, mas foi a mesma boca que contou... Pela baba que deixou gotejar em meu ombro almofadado.

Já em meu destino, desci e caminhei a lentos passos tranquilos, um curto caminho de tantos ares e eras, naquela estrada fendida pelo sol e ventos de agosto, percebendo nos meus óculos de míope a alegórica poeira de terra avermelhada... O mesmo rubro alaranjado das pinturas de Hélio Siqueira.

À beira do rio, de pé no chão e olhos cerrados, pude ouvir o som tribal, em sua língua que meu devaneio compreendia, a clamar o nome de “água cristalina”. E imerso em uma viagem quimérica, fixei o olhar numa rocha peculiar, viva, em que, superficialmente, arabescos graciosamente se moviam. Intrigou-me. E o frio que me subiu pelas pernas não vinha só da água da cachoeira. Cheguei mais perto.

- Conto séculos desde o último olhar semelhante a este, meu jovem e terno observador.

- Enquanto em rocha milenar, imaginei que seus admiradores seriam numerosos e constantes.

- Ah, meu caro... Torna-se obsoleta a fissura comum entre abundantes e formidáveis vestígios da antiguidade. Sou apenas um amontoado de frestas banais em meio a ossos, garras e dejetos decompostos e eternizados nesse sistema natural. Sendo assim, são poucos os olhares a mim dirigidos, e pela condição de raros, valiosos. Alguns vêem, mas temerosos, como aqueles ao se depararem com os defuntos nas inúmeras e sobrenaturais histórias extraordinárias que percorrem com afinco a cidade e seus arredores, preferem desprender-se daquilo que seu imaginário faz questão de instigar... Mas não sinto em sua matéria resquício algum de tal medo.

- Confesso perplexidade, contente perturbação, porção de loucura, liberdade e ansiedade pela máxima extensão desse momento onírico fantástico. Com suas arguciosas palavras, até onde pode me levar?

- Vejo que é corajoso. Há muito não tenho o prazer de companhia tão honrosa. Mencionei que, ao longo dos milênios, tenho sido pouco observada, no entanto sempre estive atenta às variações, desde o período em que tudo não passava de um gigantesco oceano, tão profundo quanto sua presente emoção humana.

- Penso sobre a efemeridade de um sopro e o imaginável tempo consumido até a efetivação de tamanhas minúcias e alterações naturais...

- Pois eu admiro a eficiência humana em produzir, reproduzir-se, organizar-se, mesmo que às vezes, com lágrimas nos olhos tristes, cansados ou decepcionados. Por aqui, vi e ouvi a composição de cantos tupis, os mesmos que ouviu a pouco, ressoando dentro de si; e muitas estações depois, homens fardados exibirem seus instrumentos a passar, caçar, guerrear e até mesmo a poetizar.

Enquanto ouvia aquela voz sem som, percebi que o sol não era suficiente para aquecer; eu almejava mais saber e somente esse esquentaria aquela estranha frivolidade interna.

- Ora... Enquanto me deslumbro com as paredes vitrais do imenso aglomerado de comércio e lazer, você presenciou as primeiras pedras, taboas e tijolos aqui dispostos!

- Não se considere menos digno, meu jovem. Estou fadada, se intocada, a velar e participar das mudanças até o fim dos tempos. Foi assim quando via aqui passear aquele gigante pescoçudo e continua sendo a sina de hoje, no tempo em que existe a moeda e é atribuído o valor de ouro a esse outro quadrúpede guampudo.

- É uma conversa abstrata demais para minha estrutura mental humana tão comum. Afirmo sem embaraço a dificuldade de imaginar a presença em tantos acontecimentos... Eu mesmo me sinto já abestalhado quando me inundo daquele magnífico mundo teatral erguido aos modos do tão próximo século passado! E ainda mais atônito naqueles breves e saudosos momentos em que encontro a restauração de obras arquitetônicas apenas algumas décadas mais antigas do que aquela!

- Essa sensibilidade típica, creio que não encontraria em outros espaços, em qualquer que fosse o tempo. É só aqui e entre vocês que se pode ver e ouvir a beleza do verdadeiro som da viola e das diversas vozes e cores das folias de reis...

- Quantas riquezas além, quantas possibilidades e potencialidades. E enquanto tudo isso podemos natural e rotineiramente experimentar, muitos de nós, filhos desse chão, lamentavelmente desperdiçamos preciosos segundos de nossas vidas aceleradas nutrindo a discórdia e criando informais e vãos debates...

- Valoriza sua terra e tudo que ela oferece. Vá.

Em recordação, senti nessas suas últimas palavras. Retornei, ainda que contra meu legítimo desejo. Talvez nunca tenha saído, de fato, daquele lugar.

Mas após toda ilusão, realística ou não, só anseio pelo cheiro doce da minha cidade, por essa brisa confortadora, meu pão de queijo com café... e nada mais.


Fernanda de Lima Almada
13 de maio de 2010
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Conto escrito para o Concurso de Contos Uberaba 190 anos de História e Cultura.


O resultado saiu hoje... e eu tive o desprazer de receber o seguinte e-mail:

"Prezado autor,


Agradecemos profundamente a disponibilidade de Vossa Senhoria em participar do Concurso de Contos Uberaba 190 anos de História e Cultura.

Tenha certeza de que gestos como esse enriquecem nossas ações e são um grande estímulo para que continuemos trabalhando em prol da cultura, em nossa cidade e, por que não, em nosso país!

De acordo com critérios relacionados ao talento literário, com critérios estabelecidos no regulamento e conforme o item 3.2 desse documento, lido e – automaticamente – acatado por Vossa Senhoria, a Comissão Julgadora concluiu não haver, em nenhum dos textos concorrentes, algumas condições essenciais à laureação, reservando-se ao direito de não selecionar nenhum conto para os prêmios previstos.

Atenciosamente.

Comissão Organizadora do Concurso de Contos Uberaba 190 anos de História e Cultura"


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Ao ler essas palavras, confesso que as recebi como um desrespeito, um descaso.

Não totalmente por mim, pois tenho consciência de que meu "pseudoconto" não está à altura de tal concurso, mas pelos autores "de verdade" que, sem dúvidas, escreveram boas produções.

Assim, nós, os "prezados autores", como a maioria daqueles imbuídos do espírito da arte,
para ela apenas  permanecemos felizes e sorridentes...
enquanto tristes e lacrimejantes frente à hipocrisia que insiste em nos cercar...

E essa é a cidade que deveríamos retratar em nossos contos...

(...)
Se sobre a verdade fosse escrito, seria merecedora do primeiro lugar?!

HÁ!


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Ouvindo: ThereIn _ Dark Tranquillity